Traficantes estão usando anestésico e anabolizante de cavalo para produzir o coquetel químico que é vendido como se fosse uma “maconha sintética”, conhecida como droga K, que é mais potente do que a maconha natural.

A Polícia Civil paulista apreendeu, no início deste mês, uma receita de droga K em um ponto de venda do tráfico em Carapicuíba, na Grande São Paulo. Entre traficantes e usuários, elas são chamadas de k2, k4, k9 ou “spice”.

Com 12 ingredientes e sete passos para preparar a mistura, a listagem de três páginas foi avaliada pelo médico psiquiatra Wilson Lessa Júnior, a pedido do Metrópoles. Ele também é professor do curso de Medicina da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e membro da Associação Médica Brasileira de Endocanabinologia.

Uma das reações características das drogas K, também conhecidas como “spice” entre usuários, é o chamado “efeito zumbi” (veja abaixo). Por causa delas, a facção Primeiro Comando da Capital (PCC) chegou a proibir seu consumo na região da Cracolândia, no centro de São Paulo.

De acordo com o especialista, esse efeito é provocado pela quetamina de uso veterinário, um anestésico constante na receita apreendida pela polícia com os traficantes da Grande São Paulo.

Além do anestésico, ele destacou a presença do fentanil, um opioide utilizado para combater dores e, em conjunto com outras substâncias, também como anestésico. Fora do ambiente hospitalar, o uso delas pode ser fatal.

“Essas substância são, inclusive, usadas em centros cirúrgicos, demandando todo um protocolo de segurança, usado racionalmente dentro do ambiente hospitalar, não como droga de abuso. Temos muitos receptores opioides no tronco cerebral, se eles forem ocupados, a pessoa pode ter uma parada cardiorrespiratória. Em ambientes cirúrgicos, há uma maquinaria que fará a pessoa respirar. Em uma cirurgia, as substâncias são úteis e seguras, mas em outra situação, é morte na certa”, alerta Wilson Lessa.

O opioide que aparece na receita dos traficantes também contribui para causar alta dependência, uma constante entre os usuários das drogas K, que consomem ininterruptamente o entorpecente, vendido a preço baixo.

A mistura resultante dos ingredientes, entre os quais ainda há ácido sulfúrico, é borrifada em tabaco, ou mesmo em maconha velha, e vendido como canabinoide sintético, mesmo não tendo nenhum indício da presença deste tipo de molécula na composição.

“Acredito que fazem isso para dar uma falsa ideia de segurança para o usuário. Se falassem a verdade, de que estão vendendo um opioide com risco de morte, talvez teriam mais dificuldade para vender”, afirma o especialista.

Ele explica ainda que a pessoa que desenvolveu a receita apreendida com os traficantes tem noções de química, pelas quantidades de itens sugeridas, além da diversidade, pois alguns deles ajudam na fixação da droga quando borrifada e, outros, a rebater um eventual mal-estar provocado pelo consumo.

“Isso só não significa que estão fazendo uma coisa segura para outras pessoas. Tanto essa receita com opioide e anestésico de cavalo, como um canabinoide sintético de fato, são perigosos, não dá para mensurar qual é mais.”

 

Avó sofre com dependência de neto

A dona de casa Geralda Pereira dos Santos, de 60 anos, testemunha a decadência diária do neto, João Vitor Santos Silva, 19, desde que ele começou a consumir as drogas K.

O rapaz morava desde a infância com a avó, na região da Sé, centro da capital paulista, e foi internado no início de abril em uma clínica de reabilitação, na região de São Roque, no interior de São Paulo.

Ele fugiu do local cerca de dez dias depois, e foi encontrado após uma semana, aproximadamente, na casa de um avô de consideração, na zona sul de São Paulo.

Dona Geralda compartilhou com a reportagem seu sentimento de impotência em não conseguir ajudar o neto.

“Ele chega a falar que quer parar de fumar essa porcaria, mas não consegue. Eu falei que se der, eu me interno junto com ele, para que consiga superar a abstinência, que sei que é muito difícil.”

Ela cuida de João Vitor desde que a mãe dele “saiu pelo mundo”, em decorrência da dependência química. Essa mesma condição, segundo ela, teria matado o pai do jovem.

João, segundo relatado à dona Geralda pelo avô de consideração do rapaz, atualmente limita sua rotina a fumar a droga K, comer e dormir. “Isso quando ele não vomita no meio disso tudo. Ele só sai para conseguir mais dessa droga. Aí ele fica depois igual um zumbi pela casa.”

 

Da cadeia para a rua

O primeiro registro de apreensão da chamada “maconha sintética” em São Paulo ocorreu em 2017, na Penitenciária de Presidente Bernardes, no interior paulista. Na cadeia, a droga é chamada de k4 e chega borrifada em folhas de papel, ou fotografias.

Com a popularização no sistema carcerário e aumento da produção – feita em laboratórios clandestinos e assessorada por químicos profissionais -, a droga começou a se tornar mais presente em apreensões feitas pela polícia, a partir de 2021.

“Todo usuário não quer só a sensação parecida da maconha, ele quer manter o hábito de fumar. Pensando nisso, para deixar mais parecido com maconha, os traficantes passaram a borrifar o líquido em uma espécie de tabaco. O usuário tem a sensação mais similar de estar fumando um baseado”, explicou o delegado Fernando Santiago, do Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcótico (Denarc).