“Fala, Calango”. Foi utilizando um apelido de seus tempos de Jardim América, que comecei a quebrar o gelo com o recluso ex-ponta-esquerda Carlos Henrique, vivendo nos Estados Unidos há quase 20 anos. “Calango? Só pode ser da Desportiva”. E foi assim que ele respondeu minha chamada no nosso primeiro contato pelo telegram. A partir daí, foi uma questão de paciência e dar tempo ao tempo para ganhar a confiança desse cachoeirense que brilhou nos estádios de futebol do Brasil e da América Latina, especialmente no Peru, e se “isolou” nos Estados Unidos nos últimos 20 anos, longe da imprensa e do futebol.


As histórias contadas por Carlos Henrique desde os tempos de Vila Rica, em Cachoeiro de Itapemirim, até ganhar a América do Norte, é o que começo a contar, conforme o prometido. Primeiro, vamos falar dessa trajetória em torno da fascinante bola de futebol, que faz tantos meninos, como ele, sonharem com dinheiro e fama, o que poucos realizam – talvez, o futebol seja o ambiente profissional onde o funil do pleno êxito seja o mais apertado, porque depende de muitos fatores para além das habilidades do jogador.

Estádio Engenheiro Araripe: aqui começou a projeção nacional de Carlos Henrique

 

O jogador mais brilhante de uma geração

 

Carlos Henrique integrou uma base na Desportiva formada por vários jogadores que depois andaram por grandes clubes. Um dos grandes destaques daquele time foi o goleiro Rogério, natural de Domingos Martins. Depois de atuar na Desportiva até 1985, passou três temporadas no Bahia, de 1986-1989, sendo bicampeão baiano e campeão brasileiro, e jogou até 1996, quando atuou na Chapecoense (SC). 


O lateral esquerdo Wallace jogou no Fluminense (RJ), o meia Marcos Nunes teve passagem pelo Botafogo (RJ) na década de 80, Paulistinha era um hábil e tímido meia-esquerda e quando foi emprestado ao América de Natal (RN), em 1983, fez um “gol do Fantástico” do meio de campo, mostrado até os dias de hoje, mas sem dúvidas o maior destaque dentre eles foi Carlos Henrique, que esteve até na pré-lista de Telê Santana para a Seleção Brasileira.


Outro que soube aproveitar aquele momento foi o centroavante Batalha, que foi para os juniores do Fluminense, jogou na Arábia Saudita, disputou o Brasileiro de 1982 pela Desportiva com destaque, esteve no América, Clube do Remo, Payssandu, América de Natal e Democrata de Governador Valadares, antes de parar.


O meia Geovani é de outra geração, seis anos mais nova. Foi um dos maiores jogadores do futebol brasileiro de sua época. Contratado em 1983 pelo Vasco, naquele mesmo ano foi campeão mundial Sub-20 pela Seleção Brasileira e eleito o melhor jogador da competição. Atuou também no futebol italiano, alemão e mexicano. Hoje, mora em Vila Velha. 


Em entrevista concedida em 2019 ao canal Tiro Libre, de seu ex-companheiro de futebol peruano Marquinho (revelação da Ponte Preta e contratado pelo Sport Boys ao Inter de Porto Alegre), com a participação de Bica (ex-Corinthians e São Paulo), atacante que saiu do Inter de Porto Alegre direto para o Sports Boys), Carlos Henrique, que por lá era chamado de Páris (isto mesmo, com a sílaba tônica na primeira sílaba, embora seu sobrenome seja Paris), contou muitas histórias, inclusive de suas origens “da terra de Roberto Carlos”, como registraram os entrevistadores, mas também “do grande escritor Rubem Braga”, acrescentou o ex-ponta-esquerda.

Bate papo com Marquinho e Bica, ex-companheiros de futebol no Peru

 

Sua infância foi passada entre a escola e os campos de terra batida de Vila Rica. “No meu bairro havia pelo menos seis campos de futebol desses, eram seis times de meninos, seis treinadores diferentes. Jogávamos de manhã, de tarde e de noite. Esta foi nossa escola de futebol. O Brasil hoje perde muito por não ter mais esses campos, com livre acesso da garotada para jogar futebol por diversão. O campo onde eu jogava hoje é fechado e só entra se pagar”, disse o ponta. 


Atacante se espelhou nos irmãos mais velhos


Em mais uma conversa telefônica de quase duas horas, enquanto cuidava dos negócios de sua empresa nos Estados Unidos, Carlos Henrique contou muitos detalhes dessa época antes de estourar no futebol e de sua trajetória até a aposentadoria. Seus exemplos estavam dentro de casa, mas no começo ele nem sonhava com a fama no futebol. 


Seu esporte favorito na infância e início da adolescência era o atletismo, por causa de sua velocidade. Tanto é que quando Marquinho e Bica perguntaram, num ping-pong com uma palavra, ao falaram “velocidade” ele respondeu Carl Lewis (o extraordinário atleta negro norte-americano, nascido em 1961, que ganhou 10 medalhas olímpicas, sendo nove de ouro, em provas de velocidade.


O futebol sempre foi uma diversão para Carlos Henrique, mas há uma forte influência familiar: o pai, Pedro Rosa, sempre contava muitas histórias dizendo ter sido bom de bola, histórias que eram confirmadas pelos amigos. “Eu perguntava: pai, você tem fotos ou filmagens dessa época para comprovar? Como não tinha, eu sacaneava dizendo que era cascata dele. Mas diziam que ele era um craque mesmo, que chegou a ganhar um emprego da Leopoldina, companhia da estrada de ferro, só para jogar futebol, mas não quis”, conta Carlos Henrique.


Segundo o ex-ponta, dois de seus tios, Malvino e Belisário, também tinham muitas histórias de futebol e, para completar as influências, seus dois irmãos mais velhos, Vicente e Paulinho, são muito bem falados como jogadores de futebol em Cachoeiro. Ambos chegaram a jogar no Estrela nas épocas em que o futebol sulino era muito forte e tinha um campeonato regional muito disputado.  


“Paulinho esteve para ir jogar no Botafogo, do Rio, mas rompeu o ligamento do joelho e houve um erro na cirurgia, naquela época sem muitos recursos, e ele não conseguiu ir em frente”, cita Carlos Henrique. 


Desde pequeno, Carlos Henrique já despontava no futebol de Cachoeiro: “Eu era pequeno, magrinho e corria muito. Quando a gente trabalhava lá na fábrica de cimento, e eu já tinha meus 14 a 15 anos, o Vicente era chamado para jogar por aqueles times amadores, times de boleiros, nos finais de semana e os caras falavam que só levavam ele se ele levasse o Henrique, que era eu. Pagavam por jogo e às vezes eu ganhava por jogo mais do que meu salário na fábrica, onde trabalhava como eletricista”.


A preocupação dos pais era sempre de dar boa educação e estudo para os filhos, por isso, tanto seu Pedro quanto a mãe, dona Neusa Paris Rosa, cobrava que estudassem: “Eu terminem o curso de eletricista do Senai em primeiro lugar e podia escolher onde trabalhar. Escolhi trabalhar na fábrica de cimento Ouro Branco porque meus irmãos já trabalhavam lá e tinha um time de futebol. Havia time de futebol por todo lado, campos para todo lado”.


Carlos Henrique já estava com 17 anos, já jogava, mesmo sem idade, no time principal do Grêmio Santo Agostinho, que era um time da igreja católica, quando começou a chamar a atenção de olheiros de times grandes. Por muito pouco, não foi direto para o Flamengo, por intermédio de Carlito, um jogador cachoeirense que andava pelo Flamengo na época de Zico. 


“Eu tinha acho que 16 anos nessa época. Valter Miraglia e Modesto Bria eram os técnicos, mas chegando lá eu queria ficar na concentração, porque não tinha onde ficar, mas não deixaram. Então, tinha um campeonato de bairros nosso aqui e eu voltei para jogar nele. Fui me acomodando no emprego e já estava decidido a fazer do futebol somente uma diversão, trabalhar na fábrica, ser eletricista, porque eu fui muito bom nisso. Já tinha minhas namoradinhas, mas eu nome corria por todo lado. Foi quando chegou o Orestes Borges e me levou para a Desportiva. Eu tinha 18 para 19 anos”, conta.

 

 Time do Grêmio Santo Agostinho, onde Carlos Henrique se projetou em Cachoeiro

 

Na verdade, o pessoal da Itabira, empresa do Grupo João Santos, da fábrica de cimentos, não queria que o jovem eletricista saísse de lá. A mãe dele também não. Quando falou que iria para Vitória para jogar futebol, dona Neusa ficou brava. Mas Carlos Henrique dobrou tanto o patrão quanto dona Neusa com um argumento infalível: disse que iria continuar estudando na melhor escola de Vitória, porque a Desportiva dava estudos para a garotada.


Três gols no primeiro jogo nos juniores da Desportiva


A chegada na Desportiva foi numa sexta-feira, segundo Carlos Henrique, que era muito franzino e por isso foi alvo de ironias quando entrou no vestiário. “Tinha lá o Bené, que quando me viu perguntou: o que é isso? Quando falaram que eu era um jogador levado pelo Orestes, ele riu: esse Orestes é maluco. Naquele dia houve só uma peladinha recreativa. O time de juniores iria fazer um jogo em Duas Barras (em Iconha) e o Carlos Pedro (técnico) me colocou. Eu estava acostumado a jogar nos campos sem grama de Cachoeiro, muitas vezes descalço, e quando coloquei aquela camisa e aquelas chuteiras novinhas fiquei maluco”.


A resposta para as ironias no vestiário Carlos Henrique deu em campo: “No primeiro tempo, abrimos 3 a 0 e eu fiz três gols. Eu era acostumado a jogar menino no meio de adultos em Cachoeiro. No intervalo, era aquele silêncio no vestiário. Ninguém estava entendendo nada. Eu disparava até o fundo e tocava para trás. Essa sempre foi minha característica. No final, ganhamos de 8 a 0. Todo mundo me deu tapinha nas costas. Quando descemos do ônibus em Vitória, o diretor que tinha bancado minha ida para a Desportiva, que a gente chamava de Carlinhos Papo-Furado, me recebeu no pé da escada”.


Outro jogador de Cachoeiro que tinha chegado para a Desportiva nas mesmas condições que ele, sem muito crédito mas muito talento, foi o lateral-direito Humberto Monteiro, no final dos anos 60, mas acabou no Atlético Mineiro, onde foi campeão brasileiro em 1971, passando depois pela Portuguesa e o Flamengo. O triste fim de Humberto Monteiro eu vou contar no episódio em que Carlos Henrique vai contar por que não tem mais ligações com o futebol.


“Estou muito feliz desse nosso contato porque estou falando com todo mundo de novo. Estava isolado de meus ex-colegas e a gente está se reencontrando pelo menos por telefone. O Armando Magnago (preparador físico da comissão técnica grená quando Carlos Henrique chegou para o clube) falou comigo por 40 minutos esta semana sem que eu soubesse quem era. Cada vez que falo com alguém, fico mais emocionado”, revela. 


Da Desportiva para o Flamengo, não demorou muito. O talento de Carlos Henrique foi a ponte. No Campeonato Capixaba de 1978, ele já estava no time principal e foi escolhido o craque revelação da temporada. Tinha sido profissionalizado, mas como ainda tinha idade para os juniores, os dirigentes reverteram sua categoria para que pudesse integrar a Seleção Capixaba no Campeonato Brasileiro Juvenil. Foi quando a imprensa do Rio começou a falar nele.


“No jogo nosso com a Seleção do Rio, numa chave que ainda tinha Brasília, Goiás e Minas Gerais, empatamos em 2 a 2 e eu joguei pela ponta-direita. O meu marcador era Zanata, um lateral do Botafogo. Na verdade, se pegasse o time de juniores da Desportiva e colocasse a camisa da seleção capixaba estava feito, mas precisava colocar outros times. Mas éramos a base. Classificavam duas seleções, e foram o Rio e Minas. Ficamos em terceiro na chave”, conta ele.


Estreia no Flamengo foi com tornozelo machucado


Em 1979, o Flamengo veio a Vitória fazer um jogo contra o Santo Antonio (6 x 0 no dia 16 de fevereiro). Foi aí que a sorte de Carlos Henrique foi selada. Ele não sabia de nada, mas foi ao Centro de Vitória e entrou num bar que havia no térreo do Edifício Álvares Cabral, sede da Federação de Futebol. De repente, viu Nei Ventura (vice de futebol da Desportiva) sentado com outra pessoa em uma mesa.

“O Nei era muito bravo, eu morria de medo dele. Quando vi que ele estava lá, fui saindo e ele me gritou: vem cá, estamos falando de você. E quem estava com ele era o Domingo Bosco (supervisor do Flamengo na época), e ele disse: você não é jogador de futebol...Tudo porque eu era muito playboy, tinha cabelão, andava com uma roupa extravagante, cheio de pulseiras. Até aquele momento eu não sabia de nada”, conta Carlos Henrique.


No outro dia, ele voltou ao Centro e foi comprar algum material na loja especializada A Esportiva, na rua Treze Maio. A loja é de Marcos Mello, que era diretor do Estrela do Norte. Quando entrou na loja, Domingo Bosco estava lá. “Ele virou-se para mim e disse que eu já era jogador do Flamengo mas que não era para falar nada com ninguém. Depois daquele dia, o Nei Ventura mudou meu look inteiro para eu ficar mais apresentável”, disse Carlos Henrique.

 

Estádio Italo Del Cima, do Campo Grande, palco da estreia pelo Flamengo

 

Apesar de ter brilhado contra os cariocas no Campeonato de Seleções, Carlos Henrique chegou ao Flamengo no início de 1979 em meio a muita desconfiança. O rubro-negro tinha também uma geração de ouro subindo e, dentre todos, havia Júlio César, o Uri Geller, o entortador. E Carlos Henrique era mais conhecido como ponta-esquerda, apesar de jogar bem também pela direita, ambidestro que era. 


E havia mais um problema: ele havia sofrido uma torção no tornozelo e não estava em condições de jogar, mas o Flamengo estava ansioso para vê-lo em ação. E a estreia se deu na quarta rodada, contra o Campo Grande, em Ítalo Del Cima, no dia 27 de maio de 1979. O time vinha embalado com quatro goleadas nas três primeiras rodadas e a expectativa era grande. 


 “Foi a primeira vez que eu senti onde estava pisando. Na primeira jogada, o lateral (Brasinha) já pisou no meu tornozelo machucado. Olhei para aquilo, olhei para o banco e pensei: vou sair. Mas aí começaram as provocações da torcida. Nas duas primeiras jogadas minhas, eu fui desarmado. Estava lotado (19.843 torcedores) e a torcida pegou no meu pé, porque o Júlio César estava subindo e era o xodó da galera. Começaram a gritar jogador de roça”, lembra.


Foi, então, que o filho de seu Pedro e dona Neusa teve o orgulho ferido: “Peguei uma bola, fiz minha correria, fiz fila, fui no fundo e toquei para o Zico só empurrar para o gol. O time todo veio em cima de mim na comemoração”. Eram 22 minutos do primeiro tempo e, daí para a frente, foi só festa, apesar de o Campo Grande ter empatado aos 31 minutos com Caio Cambalhota. Mas aos 41 minutos, em mais uma jogada de Carlos Henrique, Cláudio Adão fez o desempate. 


No segundo tempo, Carlos Henrique foi substituído por Luisinho das Arábias, mas a imprensa só falava uma coisa: é o entortador número 2. “Porque o número 1 era o Júlio César”, observa Carlos Henrique. Hoje, ele e Júlio César são grandes amigos, assim como Cláudio Adão. “O Adão é meu irmão”, observa o ex-ponta. Treinado por Cláudio Coutinho, o time da estreia foi Cantareli, Toninho Baiano, Manguito, Nélson e Júnior; Andrade, Adilio e Zico; Reinaldo, Cláudio Adão e Carlos Henrique (Luisinho das Arábias). 

Carlos Henrique com Cláudio Adão e Paula Barreto, amizade que sobrevive ao tempo

 

No próximo episódio da série, por que Carlos Henrique saiu do Flamengo e como transformou isso num trampolim para obter sucesso financeiro com o futebol. Até sábado.