Uma indígena com Covid-19 sofreu um aborto espontâneo e denuncia que recebeu o feto que havia morrido dentro de um recipiente de plástico. Jacieli Pego Ramos Bolonese, de 31 anos, é da etnia Tupiniquim e mora na aldeia Caieiras Velhas, em Aracruz, no Norte do Espírito Santo.

O marido dela, David, gravou um vídeo que circulou pelas redes sociais, em que mostra o desespero e tristeza da esposa, que segura o recipiente com o feto dentro da casa em que o casal mora com os outros três filhos.

Na gravação, eles afirmam não saber o que fazer com o material.

"Não sabemos se pode enterrar", diz David.

Jacieli contou que sofreu o aborto em casa e foi levada por uma ambulância ao hospital. Segundo a mulher, o feto ficou com ela no quarto, enquanto esperava pelo procedimento de curetagem, que deve ser feito em mulheres que sofrem abortos espontâneos. A indígena disse ainda que, depois do procedimento, e na frente dela, o feto foi colocado por uma técnica de enfermagem em uma garrafa de soro fisiológico, cortada de forma improvisada. Ela também contou que foi colocado formol no recipiente.

Jacieli também contou que o recipiente foi lacrado com fita adesiva. A mulher chegou a colocar o recipiente improvisado dentro da mala que levou para o hospital e as roupas ficaram molhadas com o formol. Somente no dia seguinte, quando o marido dela ligou para o hospital e relatou o caso, uma equipe foi até a casa deles recolher o material.

Descoberta

Jacieli conta que descobriu a gravidez no dia 19 de junho, fazendo um teste de farmácia. Dois dias depois, teve o primeiro sangramento.

Ela foi até o Hospital São Camilo, mas disse que não foi atendida porque o exame feito na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do município não foi aceito pelo médico como comprovante da gravidez. 

Mesmo com uma tosse muito forte, Jacieli voltou para casa. Ela ficou mais quatro dias em casa, sentindo dores, até ser novamente atendida na UPA. Nesta vez, a indígena foi encaminhada novamente ao Hospital São Camilo e atendida.

"Me passaram direto para o obstetra. Ainda estava sangrando, mas com muita dor de cabeça, dor nas juntas. Fui atendida, e o obstetra me encaminhou para a clínica geral. Ela fez todos os exames, que estavam todos certos, e perguntou se eu aceitava fazer o exame para Covid. Por ser somente uma suspeita, voltei para casa", detalhou.

No dia seguinte, ela voltou ao hospital e teve a notícia de que o sangramento havia surgido por conta de um descolamento de placenta.

"Mas não era para eu me preocupar, era para eu me cuidar, porque estava tudo bem com o bebê. Ele tinha batimentos cardíacos, estava com o crescimento de acordo com a idade gestacional", lembrou.

Covid-19

O exame para a Covid-19 foi colhido no dia 25 de junho, o resultado saiu no dia 29 e foi positivo. Jacieli foi comunicada por telefone do resultado.

Aborto

Na última sexta-feira (3), Jacieli acordou sentindo dor e contrações.

"Eu me contorcia de dor. Parecia que eu estava parindo um filho", descreveu.

 

"Por volta das 15h40, senti uma cólica forte. Senti estourar, e fiquei toda molhada. Quando aconteceu isso, fui para o banheiro e vi o feto. Comecei a chorar, entrei em desespero", lembrou.

Jacieli foi levada ao hospital por uma ambulância, junto com o feto que havia expelido minutos antes, para fazer a curetagem. Ela ficou isolada, e por volta das 18h30 foi encaminhada ao centro cirúrgico.

"Depois de um tempo, depois da troca de plantão, não sei quanto tempo foi, fui para o centro cirúrgico. Mas ninguém trouxe cadeira de rodas. Eu já estava muito fraca, cansada. Fui para o centro cirúrgico andando e a técnica de enfermagem não me ajudou a andar, ela foi andando na frente. Se fosse para morrer de uma hemorragia, eu tinha morrido", disse.

 

Pote de plástico

Ela lembra que saiu da cirurgia de curetagem por volta das 21h30. Mais de duas horas depois, o feto ainda estava no quarto dela, da forma como tinha sido levado de casa até o hospital.

Foi neste momento que uma profissional entrou com um recipiente de plástico no quarto dela, e armazenou o feto nele.

"Fiquei o momento todo com o feto do meu lado. A gente se sente segura em hospital. Achei que o procedimento fosse normal. Em momento nenhum pegaram o feto para nada", relatou.

Feto

No outro dia, sábado (4), Jacieli recebeu alta. Mas, antes, ela questionou a uma técnica de enfermagem o que deveria fazer com o feto.

"E o feto, o que eu faço? Ela respondeu 'a única coisa que a gente pode fazer é te dar uma sacolinha pra senhora levar consigo'. Eu nunca tinha passado por essa situação. Eu estava nervosa, não é fácil o que eu estou vivendo. Depois disso, outra técnica me deu o papel para assinar. Perguntei de novo sobre o feto. Ela disse 'a gente não tem sacola aqui'. Eu perguntei o que eu faria, ela disse que eu tinha que decidir o que fazer. Tentei colocar esse pote dentro da minha bolsinha de roupa, derramou formol dentro. Eu estava desnorteada, sofrendo por causa dessa situação", relembrou.

Ministério Público

O Ministério Público Federal (MPF) comunicou em nota que a superintendência do hospital informou que enviou uma equipe até a residência da indígena, para orientá-la sobre o ocorrido.

Além disso, o MPF requereu ao Distrito Sanitário Especial Indígena que seja dado apoio psicológico à família. O fato ainda foi informado à Defensoria Pública, que, assim como o MPF, está analisando a adoção de medidas cabíveis.