É cediço que o indivíduo preso em flagrante delito não é mais objeto de investigação e sim Sujeito de Direitos. Nessa trilha de pensamento, o mais relevante é entender que o atendimento aos direitos e garantias fundamentais dos presos e as prerrogativas dos advogados prevalece, constitucionalmente, sobre o poder/dever do Estado em ser “eficiente”, sob o argumento da “modernização” dos sistemas de atendimento do serviço público e de justiça sob o Princípio da Economicidade.

 

Não se pode entender que a falta de aparato estatal, de equipamentos públicos, como nas delegacias de polícia, cujos serviços são essenciais e demandam atendimento pessoal e imediato, em muitos casos, passem a ser prestados remotamente, sem qualquer contato presencial, ferindo um direito do preso, garantido constitucionalmente, bem como pela legislação processual penal.

 

De plano, o contato pessoal e direto entre o preso, acompanhado por um advogado particular ou defensor público, perante uma autoridade policial, recebe toda e a melhor atenção necessária, inclusive, sendo possível, quando requerido, uma coleta de provas no local do crime, o que levaria a preservação da cadeia de custódia (preservação do local do crime praticado e diligências a serem realizadas pelo Delegado, investigadores e peritos), a fim de garantir “todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte”, nos termos do artigo 158-A, do Código de Processo Penal. O respeito às etapas de rastreamento para a cadeia de custódia são de suma importância, e claramente descritas no art. 158-B, do CPP.

 

Portanto, não se faz aqui referência a uma mera “burocracia estatal” de atendimento aos governados, mas sim de uma clara violação ao devido processo legal, posto que o preso poderá perder o direito de produzir provas de sua inocência, e mais, poderá perder o Estado provas que demonstrem a culpabilidade de um indivíduo, bem como de elementos dos indícios do crime, dada a falta de acompanhamento físico e pessoal de um delegado na delegacia de polícia durante uma oitiva a um preso.

 

Indo além, o teleflagrante não é apenas um desrespeito aos direitos do preso, violando de forma gritante a legislação processual penal e a Carta Magna de 1988, mas também, uma ofensa direta contra a advocacia, transgredindo as prerrogativas dos advogados.

 

É direito do preso em flagrante delito ser ouvido pessoalmente pela autoridade policial (art. 304, do CPP) e dessa forma, o Delegado de polícia faz a primeira apreciação dos fatos relacionados à prisão, merecendo destaque que em muitos flagrantes, o Delegado poderá relaxar o ato, após a análise detalhada da prisão em flagrante, entendendo e interpretando de forma diversa dos policiais militares/polícia preventiva, conservando assim a liberdade do conduzido (previsão no § 1º, do art. 304, do CPP).

 

O Delegado, ainda na prisão em flagrante, caso o crime deixar vestígios à serem analisados, deverá se dirigir até o local do crime, no qual serão realizados todos os procedimentos para a preservação das provas (cadeia de custódia), conforme o art. 158-A do Código de Processo Penal, fazendo ainda a oitiva dos policiais que realizaram a prisão em flagrante, oitiva de possíveis vítimas e testemunhas.

 

É evidente que a implantação do “teleflagrante” é uma forma do Estado “economizar” dinheiro em detrimento ao atendimento à população, sob o suposto argumento de privilegiar o Princípio da Economicidade, bem como aumentar a produtividade da Polícia Civil, já que supostamente seria possível agir em bem mais investigações, e melhorar a administração. A verdade, contudo, é clara e notória quanto a ineficiência do Estado, visto a insuficiência de delegados de polícia, bem como do efetivo policial em geral.

 

Mas o prejuízo maior está por vir, uma vez que muitas prisões são arbitrárias e de patente ilegalidade, e o teleflagrante deixa claro o descaso e totalitarismo do Estado, atacando frontalmente as prerrogativas da advocacia.

 


A legislação processual penal, quando trata do inquérito policial em caso de flagrante delito, determina cabalmente que:

 

“Art. 6º  Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá:

I - dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais;          

II - apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais;          

III - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias;

IV - ouvir o ofendido;

V - ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título Vll, deste Livro, devendo o respectivo termo ser assinado por duas testemunhas que Ihe tenham ouvido a leitura;

VI - proceder a reconhecimento de pessoas e coisas e a acareações;

VII - determinar, se for caso, que se proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias;

VIII - ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, se possível, e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes;

IX - averiguar a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista individual, familiar e social, sua condição econômica, sua atitude e estado de ânimo antes e depois do crime e durante ele, e quaisquer outros elementos que contribuírem para a apreciação do seu temperamento e caráter.

X - colher informações sobre a existência de filhos, respectivas idades e se possuem alguma deficiência e o nome e o contato de eventual responsável pelos cuidados dos filhos, indicado pela pessoa presa”.    


 

É possível, deste modo, cumprir o determinado no art. 6º, do CPP, mediante um atendimento pela autoridade policial em um “teleflagrante”?

 

A situação imposta é tão inaplicável e grave, que o Sindicato dos Delegados de Polícia Civil do ES - SINDEPES, por sua presidente, Dra. Ana Cecília de Almeida Mangaravite, a Associação dos Delegados de Polícia - ADEPOL, representada por seu presidente, Dr. Rodolfo Queiroz Laterza, o Sindicato dos Policiais Civis do ES, representado por seu presidente Aloisio Fajardo, emitiram notas públicas se manifestando contra a implantação do teleflagrante via Central de Flagrantes e a extinção das Delegacias de Plantão.

 

No Brasil, o sistema de atendimento por teleflagrante, já é utilizado nos estados do Paraná e Minas Gerais, e não há comprovação de avanço.

 

Lamenta-se a implantação do Teleflagrante, pois, a “modernização” e otimização do tempo na prestação do serviço público, sob o pseudoargumento da Economicidade dos gastos públicos, é um caminho sem volta. Sofrerá assim a sociedade diante desta e de muitas outras injustiças que estão por vir!

 

É válido mencionar que, atualmente, é uma utopia a aplicação do teleflagrante, por nossa Constituição Democrática, apesar da virtualização das relações humanas ser cada vez mais forte e progressiva.

 

Contudo, o uso desta ferramenta para a apresentação do preso por videoconferência ao Delegado é inconstitucional e totalitário, sendo mais fácil rasgar a constituição e criar uma nova para encaixar tais usos da tecnologia pelo Estado, que neste fatídico caso, é ineficaz, trazendo à tona a face orwelliana de um Estado cada vez menos garantidor.

 

O Poder Judiciário que se prepare para a enorme quantidade de ações liberatórias que chegarão!

 

A Ordem dos Advogados do Brasil da seção do Espírito Santo já está tomando as medidas cabíveis, tendo impetrado Mandado de Segurança na Justiça Federal, com pedido de liminar, sob o nº 5033817-72.2021.4.02.5001 para a suspensão do teleflagrante, tendo inclusive o Juízo da 5ª Vara Federal Cível de Vitória – ES já se manifestado, intimando o Secretário de Segurança Pública do estado do Espírito Santo, para que este se manifeste quanto à pretensão liminar no prazo de 3 (três) dias, e ainda preste suas informações no prazo de 10 (dez) dias.