O gol contra marcado pelo próprio MP em favor dos investigados, sem nem recorrer ao juiz da partida, surpreendeu até autoridades no STF. A conduta foi tachada como estranha e exótica.

A competência para decretar uma prova ilícita é do Poder Judiciário, segundo a juíza federal chefe de gabinete do Ministro do STF Dias Toffóli. Ela está certa: é o que diz o artigo 157, § 3º do Código de Processo Penal.

Essa norma impõe o princípio da reserva de jurisdição para deliberar sobre o assunto, por força do sistema acusatório no Estado de Direito. Assim como no futebol, há dois lados e um juiz, devendo este decidir as regras da partida.

Como partes, os órgãos investigadores devem agir com presunção de prova LÍCITA, sob pena de crime de prevaricação. Não podem decidir fazer gol contra de propósito, nem marcar pênalti em favor do lado oposto sem ordem do juiz. O exemplo é bizarro, porém fácil de entender, vez que retrata com exatidão a anomalia do MP capixaba na "partida".

Cabe à parte investigada se socorrer do juiz do jogo, alegando a nulidade da prova, caso se sinta prejudicada com sua validade nos autos.

Nenhuma autoridade, ainda mais do Poder Executivo, como é o caso do MP e da polícia, pode arbitrariamente enterrar uma prova sem nenhum controle judicial, sob o argumento de que é ilícita. 

Do ponto de vista futebolístico, seria o mesmo que um time marcasse por conta própria um gol contra ou pênalti em favor do time oposto, ignorando o juiz. A cena é esdrúxula mesmo, não se assuste o leitor.

Do ponto de vista do direito, há um outro exemplo fácil de enxergar: imagine se órgãos descumprissem unilateralmente uma lei por considerá-la inconstitucional, sem pedir ao judiciário que assim a declarasse. 

Se uma prova ilícita é aquela que não está em conformidade com Constituição, então tem-se que seu reconhecimento é uma declaração de sua inconstitucionalidade. Se só a justiça pode declarar uma lei inconstitucional, aplica-se exatamente o mesmo raciocínio para a decretação de uma prova ilícita.  

Imagine o Tribunal de Contas, Secretaria de Controle, receita, polícia, dentre outros órgãos decidindo unilateralmente se uma prova é lícita ou ilícita para iniciar uma investigação, sem controle judicial. 

Ou, no exemplo acima, se cumprem ou não uma lei que entendam inconstitucional, por conta própria. A bagunça e a baderna inverteriam a lógica do sistema acusatório. A partida é sempre apitada por um juiz. 

Esse entendimento anômalo do MP Capixaba sobre o pen drive do Detran inaugura um marco de que toda e qualquer apuração pode ser arquivada no nascedouro, ao gosto do freguês, sem controle judicial.

Dispensar a análise do juiz significa dizer que o interesse público fica refém do subjetivismo e das paixões humanas, o que a história já mostrou ser temerário, ainda mais nesse período de instituições rendidas e contraditório aprisionado no Estado.

O registro da juíza federal chefe de gabinete do ex-Presidente do STF sobre "a conduta exótica ou muito estranha" (palavras da magistrada) do MP-ES foi feito perante advogados que despachavam a Reclamação da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Na ação, o Ministro Dias Tóffoli deferiu liminar para suspender investigações abertas pela Procurada Luciana Andrade contra o jornal com objetivo escuso de descobrir suas fontes sigilosas. 

Ledo engano se a cúpula do MP Capixaba acha que suas jabuticabas jurídicas não estão sendo observadas com lupa no plano nacional e internacional. Até jornal dos EUA, sediado na Pensilvânia, repercutiu os fatos. O MP pode muito, obviamente, mas não pode tudo. 

A mesma crítica vale para o promotor Rafael Calhau que, estranhamente, deu decisão idêntica à da Procuradora Geral Luciana Andrade. Assim, Calhau também enterrou o pen drive no plano da investigação por ato de improbidade (cível), imitando Luciana no plano criminal. Ambas as decisões aparentam ter sido feitas por uma mesma pessoa, o que seria suspeito e irregular, porquanto são órgãos distintos do MP do ES.

A prática jurídica do dia a dia permite ao leitor enxergar com facilidade a jabuticaba jurídica inventada em terras capixabas para abafar o maior escândalo da história de um governo capixaba. 

Normalmente, quem se insurge contra uma suposta prova ilícita é a parte investigada, nunca os investigadores. Estes sustentam o uso de toda e quaisquer provas, notadamente para combater organizações criminosas, como seria o caso do pen drive do Detran. Os alvos é que tem o constrangimento e o trabalho de pedir à justiça a decretação de ilicitude. 

Assim, o normal são os investigados ou acusados tentarem convencer o juiz de descartar uma prova em seu desfavor, sob argumento de sua ilicitude. 

Por exemplo, a parte pede ao magistrado para não deixar o MP usar o conteúdo de seu celular no processo sem ordem judicial. Apenas pede e o juiz decide. 

Assim ocorre em 100% dos casos, não havendo precedente similar ao caso capixaba. O jornal pesquisou e não achou sequer um. Em outras palavras, o contrário nunca foi visto: o MP lutando incansavelmente para tornar uma prova ilícita e, portanto, descartá-la da investigação. Marcar um pênalti para o lado oposto na partida soa um tanto quanto estranho.

Mas mesmo nesse cenário bizarro da jabuticaba jurídica, teria o MP do ES que se submeter ao caminho judicial: pedir ao poder judiciário que decretasse a ilicitude da prova para inviabilizar seu uso e subtraí-la dos autos. 

É o que manda a lei e o próprio sistema acusatório, que impõe presunção de LICITUDE da prova, obrigando sua atuação como parte em uma partida, sob pena de prevaricação. 

Se o controle judicial sobre a validade de uma prova não existir, seja para mantê-la ou subtraí-la de investigações, haverá subjetividade total dos investigadores para manipular as apurações. O juiz vira mero figurante. 

O normal é os times (partes) puxarem para seu lado, cavando pênalti, faltas e fazendo gols contra o lado oposto. Imaginem decidirem tudo a favor de seu lado, sem recorrer ao magistrado da partida. Defender seus interesses é o normal, sem recorrer ao juiz é inaceitável.

Agora, de forma anômala, imaginem decidirem a favor do lado oposto, contra seus interesses na partida, sem ordem do juiz. Além da subversão da disputa, acabando com o jogo e impondo punições ao time que não cumpriu seu papel, haveria também a mesma violação ao papel do juiz. Duplamente inaceitável. É o caso do pen drive do Detran.

Por esse motivo, o MP, a polícia e qualquer outra autoridade do Poder Executivo são obrigados a admitir toda e qualquer prova em uma investigação, obedecendo sua presunção de licitude. Devem jogar o jogo, conforme seu papel, sem profanar a disputa. Se quiserem sair do padrão e inventarem a roda, como no caso do ES, devem pedir ao juiz que reconheça a prova como ilícita.

Não pode o MP, por conta própria, decretar unilateralmente uma prova como sendo ilícita, sem controle judicial. O MP é parte, tem lado na partida. Admitir isso seria o mesmo que conferir a uma parte investigada, o time oposto, o poder de agir da mesma forma: bastaria ignorar uma prova entendida por ela como ilícita, sem consultar a justiça.

Curioso é que no Brasil há precedentes idênticos de pen drives que foram admitidos como prova LÍCITA pelos Ministérios Públicos brasileiros. Pen drives achados na rua, escondidos por bandidos em viatura, esquecidos por advogado pedófilo no fórum, dentre inúmeros outros casos, serviram para deflagrar operações.

Ou seja, os investigadores usaram essas provas sem nenhum questionamento quanto a sua validade. Jogaram o jogo do Estado de Direito como partes, mantendo a disputa e a dialética inerente às suas obrigações. 

Respeitaram a presunção de licitude dessas provas, principalmente quando o material serviu para desmontar organizações criminosas de corrupção, pedofilia, tráfico de drogas e até plano de assassinato de um juiz (este último um exemplo citado pelo STF no HC nº 70814, Relator Ministro Celso de Mello REL. MIN. CELSO DE MELLO, DJ de 24/06/1994). 

Os MP's não remam em sentido contrário, até porque se o conteúdo do pen drive fosse um plano de assassinato de um juiz de direito, da Procuradora Geral ou do próprio governador do ES, por exemplo, quem duvida que seria utilizada a prova para deflagrar uma operação e prender os responsáveis? Com toda pompa e circunstância, aliás.

Quem imagina uma alegação unilateral do MP capixaba de que um pen drive contendo um plano de assassinato de uma autoridade seria prova ilícita, por não haver ordem judicial para sua obtenção? Quem imagina o MP e a polícia ignorando  esse conteúdo e deixando o crime ocorrer? 

A jabuticaba capixaba, como já dito, vai na contramão da lei e do dever dos órgãos investigadores: aqui os membros do MP e da Polícia forçam a ilicitude da prova quando é desfavorável ao Governo Casagrande. 

Aliás, prova mais que desfavorável, irrefutável. O famoso batom na cueca.