Uma inspeção internacional sobre os mecanismos de combate à lavagem de dinheiro no Brasil reacendeu a cobrança de autoridades e especialistas pela criação de regras para evitar que escritórios de advocacia sejam usados para esse tipo de crime no país.

Como a proteção ao direito de defesa confere à advocacia a possibilidade de manter sob sigilo as relações com os clientes e as transações realizadas para eles, há criminosos que se aproveitam dessa blindagem para maquiar dinheiro originado em delitos como se fossem valores lícitos.

A verificação sobre o sistema antilavagem foi realizada no Brasil durante três semanas em março por técnicos do órgão que serve como referência global para o setor, o Gafi (Grupo de Ação Financeira Internacional).

A seção brasileira da Transparência Internacional, por exemplo, manifestou ao grupo de técnicos do órgão a preocupação quanto à falta de adoção de medidas de regulação antilavagem do setor da advocacia privada brasileira.

O grupo do Gafi chegou a pedir à OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) uma reunião com o presidente da entidade de classe, Beto Simonetti, mas o encontro não ocorreu.

Segundo a assessoria de imprensa da OAB, houve incompatibilidade com a agenda de Simonetti, e então a "entidade se colocou à disposição do Gafi para participar das discussões e dos encontros do grupo, tendo inclusive destacado representante para acompanhar reuniões do colegiado, mas não recebeu retorno do grupo".

Na avaliação anterior realizada pelo Gafi, em 2009, esse tema já havia sido levantado e o Brasil foi criticado no relatório da inspeção por descumprir compromissos internacionais de fazer com que advogados fossem obrigados a comunicar transações financeiras suspeitas às autoridades locais.

Segundo as diretrizes do órgão internacional, a advocacia está entre as atividades e profissões não diretamente ligadas ao mundo financeiro que devem ter regras para combater a circulação ilegal de dinheiro.

Também estão nesse grupo as corretoras de imóveis, os negociadores de metais e pedras preciosas e os cassinos.
No caso dos advogados, as atividades mais preocupantes são a compra e venda de imóveis, negociações que envolvam valores e ativos de clientes e atuações relativas a contas bancárias, constituição e organização de empresas.

Segundo Robinson Fernandes, delegado da Polícia Civil de São Paulo e presidente da comissão anticorrupção e lavagem de dinheiro da Conacate (Confederação Nacional das Carreiras e Atividades Típicas de Estado), que também é avaliador do Gafi fora do Brasil, o órgão exige que os países tenham uma regulamentação para a advocacia em relação a pelo menos essas atividades específicas.

A orientação é a de criar regras para que advogados e escritórios façam comunicações de operações suspeitas a um órgão de fiscalização ou controle de cada país.
Para os especialistas, no Brasil essas comunicações deverão ser feitas ao Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), que é a autoridade central do sistema de prevenção e combate à lavagem de dinheiro e é vinculado administrativamente ao Banco Central do Brasil.

De acordo com Fernandes, a legislação brasileira antilavagem já permite que a OAB crie as regras para a advocacia, conforme exigido pelos órgãos internacionais.

"O que falta é vontade política da OAB para regulamentar. Por exemplo, o Conselho de Contabilidade já regulamentou para os contadores. A OAB prometeu em 2020 que soltaria uma regulamentação, mas até agora não soltou", diz o especialista.
Maíra Martini, líder da área de pesquisa sobre lavagem de dinheiro da sede da Transparência Internacional, na Alemanha, ressalta que o Brasil também desrespeita os princípios de transparência do G20 (grupo das 20 principais economias do mundo) ao não criar regras contra a lavagem de dinheiro por meio de advogados.

Martini diz que o país é um dos poucos do G20 a não adotar a medida, ficando ao lado de Estados Unidos, Austrália e Canadá na lista de nações do grupo que não cumprem a exigência.
Segundo a especialista, "vários casos de corrupção em larga escala dependem da ajuda de advogados, de contadores e de bancos para acontecerem. A ajuda pode ser pela não checagem ou pela ciência e participação no esquema, ou seja, pode ser negligência ou envolvimento efetivo".

"Não regulamentar a profissão significa que se está tornando a vida dos criminosos no Brasil muito mais fácil", completa.
A pesquisadora disse que teve contatos com representantes da OAB em 2021 e o conselho da entidade chegou a votar um provimento para criar a regulamentação, mas o resultado foi pela rejeição da medida.

A procuradora regional da República em São Paulo Janice Ascari tem experiência de mais de 30 anos no Ministério Público Federal trabalhando em casos de corrupção e lavagem de dinheiro e lembra que, em muitos deles, ocorreu o uso de advogados ou escritórios pelos criminosos.

Ascari afirma que, desde o início das grandes operações da Polícia Federal no começo da década de 2000, com a operação Anaconda, até mais recentemente, com a operação E$quema S, vários escritórios e advogados foram investigados por supostamente terem participado de cadeias delituosas, o que mostra a importância da regulamentação do setor.

Uma das formas de lavar dinheiro por meio de escritórios é pela simulação ou superfaturamento na prestação de serviços jurídicos, diz a procuradora.

'É uma zona realmente cinzenta essa das transações de dinheiro entre clientes e advogados. Esse assunto é debatido há décadas, e não se sai do lugar", afirma.
Procurada pela Folha, a OAB Nacional afirmou, por nota, que "a regulamentação mencionada é um dos temas que devem ser debatidos, futuramente, pelo plenário do Conselho Federal da OAB".

"A OAB promove campanhas de esclarecimento a respeito do assunto e atua administrativamente nos casos em que há sentença judicial, respeitando o princípio da presunção de inocência. Os processos ético-disciplinares, conforme o Estatuto da Advocacia, são sigilosos. As sanções previstas vão da censura à expulsão dos quadros da advocacia", diz a entidade de classe.