A lei é clara: a União pode “autorizar o plantio, a cultura e a colheita” de “vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas” desde que “exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização”. Os trechos citados estão na lei 11.343, que completa hoje 13 anos de vida (foi sancionada em 23 de agosto de 2006). O decreto que a regulamentou, o 5.912 de 27 de setembro de 2006, estabeleceu que a competência para tal autorização é do Ministério da Saúde, ao qual a Anvisa está subordinada. Apesar das prerrogativas dadas pelo diploma legal, a autonomia dos órgãos não está garantida, não sob o governo de Jair Bolsonaro.

O presidente já demonstrou que vai interferir em assuntos de seu interesse, seja para proteger seus filhos e aliados, seja para assegurar que sua visão de mundo esteja contemplada em iniciativas não só de governo, mas também de Estado. Foi assim com o Coaf, a Receita Federal, o Inpe, a Ancine, o Banco do Brasil, a Petrobras, a Funai e até a Polícia Federal, todos submetidos a ingerências pouco republicanas. No caso da Anvisa, a caneta presidencial ainda não se manifestou, mas os recados vieram de todos os lados. Na última segunda-feira, dia 19, o porta-voz da presidência, Otávio Rêgo Barros, afirmou à imprensa que “o presidente reforça que é favorável ao uso desse produto para fins medicinais, mas não admite que brechas da legislação sejam usadas para o plantio e consumo da maconha”. Mais claro, só se o próprio Bolsonaro tivesse dado a declaração.

A oposição ao cultivo surgiu primeiro nas palavras do ministro da Cidadania, Osmar Terra (MDB), defensor radical do proibicionismo, da guerra às drogas e da abstinência como única forma de tratar dependentes. Terra chegou a ameaçar com o fechamento da Anvisa caso a agência autorizasse o cultivo da planta no Brasil. O presidente da agência, William Dib, cujo mandato se encerra no final do ano, havia se mostrado favorável à proposta que permitiria que pessoas jurídicas cultivassem a erva para a realização de pesquisas e produção de medicamentos. Por sua vez, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, mudou de posição e passou a se declarar contrário ao plantio. “Seria uma droga a mais para lutar. Já temos o álcool, o tabaco, que são drogas lícitas e a gente tem que lidar com os malefícios”, disse nesta semana.

Ligando os pontos e com base no comportamento recente do Executivo, que se envolve até em questões menores, fica fácil imaginar o rumo que a regulamentação da cannabis medicinal vai seguir. No começo da semana, a Anvisa encerrou o período de consulta pública sobre o tema e agora vai reunir seus técnicos para redigir as normas, valendo-se das prerrogativas que lhe conferem a lei 11.343/2006 e o decreto 5.912/2006. Lobistas e ativistas trabalham nos bastidores para influenciar na decisão. Durante o período em que o debate esteve aberto, a agência recebeu 554 contribuições da sociedade, a imensa maioria delas favorável a uma regulamentação mais liberalizante. Com as três manifestações mais recentes, do presidente e de dois de seus ministros, a balança parece estar pendendo para o lado oposto.