Foram necessários cinco anos, intermeados por cassação de mandato em primeiro e segundo graus revertida pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e uma reeleição com novas suspeitas de compra de voto, e por fim um dano de mais de R$ 43 milhões ao erário, conforme as investigações da Polícia Federal, para que o Espírito Santo comece a se ver livre de um dos seus políticos de conduta pública mais duvidosa dos últimos tempos – não é o único, registre-se.


Na tarde desta terça-feira (26), a Câmara de São Mateus, um dos municípios que mais crescem no Norte do Espírito Santo, “apesar de você”, decidiu por oito votos a dois (o presidente somente vota para desempatar) instalar a comissão processante e iniciar o processo que poderá levar ao impeachment e inelegibilidade por pelo menos oito anos do prefeito afastado Daniel Santana, o Daniel da Açaí, eleito pelo PSDB e hoje sem partido. 


A instalação da CP foi em atendimento a pedido do cidadão Eliano Ribeiro. Um grupo de advogados também pediu o impeachment, mas, como o assunto era o mesmo, Paulo Fundão, presidente da Casa, decidiu por acolher e votar o pedido do cidadão, que entrou primeiro.

Paulo Fundão, presidente da Câmara de São Mateus


A Comissão (que no município equivale à CPI nas esferas estadual e federal) é formada por Carlinho Simião (Podemos), sorteado como presidente, Cristiano Balanga (Pros) como relator e Gilton Gomes (PSDB). O relator Cristiano Balanga é um dos dois vereadores a votarem contra a abertura da comissão processante – o outro foi Kácio Mendes, sem partido, a exemplo do prefeito afastado. Eles alegaram que não viram o documento que pediu o impeachment de Daniel e queriam procrastinar por duas sessões a tomada de decisão – pedido derrotado pelo plenário.


Daniel Santana ficou preso por nove dias, do dia 28 de setembro a 7 de outubro, por ordem do desembargador federal Marcello Ferreira de Souza Granado, relator do processo no Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2). Mesmo em liberdade, o prefeito afastado ficou proibido de se aproximar da prefeitura ou de qualquer órgão público. O comando do município está com o vice-prefeito Ailton Caffeu (Cidadania), que já trocou todo o secretariado.

Ailton Caffeu (Cidadania) assumiu a prefeitura, mas há pedido de cassação da chapa inteira por compra de votos


REELEIÇÃO


A situação de Caffeu, porém, também não é tão tranquila. Se na eleição de 2016, Daniel Santana teve larga vantagem, resultado de abuso de poder econômico e compra de votos com a distribuição de água mineral de sua fonte, em épocas de forte estiagem que coincidiu com o período eleitoral, conforme denúncia do Ministério Público Eleitoral, acolhida pelo Juizo local e pelo Tribunal Regional Eleitoral, mas derrubada no TSE, a reeleição em 2020 foi apertada.


Em 2016, Daniel da Açaí, pelo PSDB, conquistou 55,32% da votação (30.780 votos), e o segundo colocado, Carlinhos Lyrio (PSD), apenas 2,27% (14.063 votos). Na eleição de 2020, a situação foi bem diferente: Daniel (PSDB) caiu e Carlinhos, agora, no Podemos, subiu. Daniel teve 20.899 votos (36,42%), enquanto Lyrio teve 19.307 (33,65), uma diferença de 1.592 votos. Mas, de forma inédita, Daniel conseguiu uma proeza: a renovação completa da Câmara de Vereadores, elegendo 11 aliados.


Mesmo assim, também a reeleição, tendo Caffeu como vice, sofreu denúncia de compra de votos, com o pedido assinado por nove partidos do município para que a Polícia Federal investigue. Como esse tipo de procedimento é, geralmente, sigiloso, não se sabe se o caso está em andamento. Se estiver, o próprio Caffeu corre risco, pois o pedido é de cassação da chapa, como aconteceu em 2016. Só que naquela época a denúncia foi feita logo após a eleição, pelo próprio MPE.


As denúncias de que Daniel da Açaí cometia desvio de recursos públicos ocorreram desde o primeiro ano de seu mandato, e surgiram tanto no âmbito estadual como interestadual. Radialistas de Porto Seguro, na Bahia, denunciaram que Daniel mantinha um esquema de troca com a administração municipal da cidade baiana para contratações de empresas, principalmente na realização de eventos.


OPERAÇÃO 


Daniel foi preso no dia 28 de setembro juntamente com a controladora do município e chefe de gabinete, Luana Zordan Palombo, o operador João de Castro Moreira, e mais quatro empresários - Edivaldo Rossi da Silva, Yosho Santos, Gustavo Nunes Massete e Caio Faria Donatelli, no âmbito da Operação Minicius, desencadeada pela Polícia Federal e que cobriram todo o período em que Daniel esteve à frente da Prefeitura, de 2017 a 2021.


A operação foi deflagrada pela Polícia Federal, resultando em sete mandados de prisão temporária e 25 de busca e apreensão, em residências e empresas, sendo 19 em São Mateus, seis em Linhares e um em Vila Velha. A fraude se eleva a R$ 43,5 milhões. 


A operação contou com a participação de aproximadamente 85 policiais federais vindos de outras unidades do país, além da presença do procurador regional da República e de servidores da Controladoria Geral da União (CGU). Segundo a PF, o objetivo das ações, além do cumprimento das ordens judiciais, foi obter novos elementos de provas para desmantelar a organização criminosa dedicada ao cometimento de fraudes licitatórias, corrupção ativa e passiva e lavagem de dinheiro.


As investigações se iniciaram após o recebimento de denúncias relatando a ocorrência de dispensa ilegal de licitações, com a exigência de percentual de propina sobre o valor das contratações públicas. O esquema contava também com distribuição de cestas básicas como forma de apaziguar a população em relação aos atos ilícitos.

 

Durante as investigações, foram obtidas provas que indicam que o prefeito de São Mateus, desde o seu primeiro mandato, de 2017 a 2020, organizou um modelo criminoso estruturado dentro da administração municipal dedicado ao cometimento de vários crimes, que se perpetuaram no atual mandato.

 

A Polícia Federal afirma que foi constatado o direcionamento fraudulento de licitações em segmentos como de limpeza, poda de árvores, manutenção de estruturas e obras públicas, distribuição de cestas básicas, kits de merenda escolar e aluguel de tendas. Algumas dessas licitações contavam com verbas federais que deveriam ter sido aplicadas no combate à pandemia de Covid-19.

 

As informações também indicaram que, uma vez que empresas ligadas ao esquema "venciam" as licitações, estabelecia-se um valor a ser pago aos agentes públicos que variava de 10% a 20% do valor do contrato. Como forma de não gerar perdas aos empresários, a entrega de bens e serviços era identicamente reduzida, na proporção das propinas pagas.

 

Entre as empresas beneficiadas pelo esquema, há algumas do próprio prefeito, que se valia de sócios de fachada (laranjas) para ocultar sua verdadeira condição de proprietário. O valor dos contratos celebrados pelo município com as empresas investigadas chega ao valor de R$ 43,5 milhões.

 

Daniel do Açaí chegou a ser cassado por abuso do poder econômico, decorrente da distribuição de água em período anterior e por ocasião das eleições, quando o município passava por crise hídrica, mas o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) reverteu a decisão em 2019.

Crimes

De acordo com a Polícia Federal, os investigados poderão responder pela prática dos crimes de Corrupção Passiva e Corrupção Ativa (arts. 317 e 333 do Código Penal), Lavagem de Dinheiro (art. 1º da Lei nº 9.613/1998), Organização Criminosa (art. 2º da Lei nº 12.850/2013) e de Fraudes Licitatórias (art. 337-F da Lei nº 14.133/21).

Corrupção Passiva - Art. 317. Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem: pena, reclusão, de dois a 12 anos, e multa.

Corrupção Ativa - Art. 333. Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de Lavagem de Dinheiro - Art. 1o Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. Pena de – reclusão, de três a dez anos, e multa.

Organização Criminosa - Art. 2º Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa: pena de reclusão, de três a oito anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas.

Fraude Licitatória - Art. 337-F. Frustrar ou fraudar, com o intuito de obter para si ou para outrem vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação, o caráter competitivo do processo licitatório: pena de reclusão, de quatro a oito anos e multa.